Senado acaba de reunir num livro os originais de 20 panfletos históricos que foram escritos, publicados e distribuídos há 200 anos, em meio ao processo da Independência do Brasil.
Produzidos entre 1821 e 1824 e hoje amarelados pelo tempo, os papéis revelam que, ao contrário do que se costuma acreditar, o movimento político contra Portugal liderado pelo príncipe D. Pedro (que só se tornaria D. Pedro I após a Independência) nada teve de simples, consensual, pacífico ou previsível.
Naquele momento, diferentes projetos de Brasil estavam postos sobre a mesa. A transformação da América portuguesa num país independente, governado por uma cabeça coroada e com governo centralizado no Rio de Janeiro foi apenas um dos projetos concorrentes — o que conseguiu vingar.
Os defensores desse e dos demais projetos recorreram não apenas às armas, mas também às ideias. Eles com frequência lançaram mão dos panfletos com o intuito de espalhar seus argumentos, recrutar militantes, conquistar a opinião pública e fazer seu respectivo ideal sair vitorioso naquela encruzilhada política.
Esses 20 panfletos históricos compõem o livro Vozes do Brasil – A linguagem política na Independência, organizado por uma equipe de historiadoras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e publicado pelas Edições do Senado Federal.
Trecho de panfleto produzido em abril de 1822, no Maranhão, pelo negociante João Rodrigues de Miranda. O panfleto defende a manutenção da união entre Brasil e Portugal (imagem: reprodução/Vozes do Brasil)
O livro em papel pode ser comprado no site da Livraria do Senado. A versão digital está disponível na página da Biblioteca do Senado para ser baixada gratuitamente.
A publicação de Vozes do Brasil foi a primeira de uma série de atividades organizadas pelo Senado para a celebração dos 200 anos da Independência. A programação comemorativa continuará pelos próximos 11 meses, até o dia 7 de setembro de 2022.
Em 1821, os diversos projetos de Brasil se apresentaram de forma clara na arena pública, depois que o rei D. João VI, que vivia no Brasil, foi obrigado pelo Parlamento português a retornar para a Europa.
O rei havia trocado Lisboa pelo Rio de Janeiro em 1808, para fugir de Napoleão Bonaparte. Desde então, o Brasil não era mais uma mera colônia, mas sim a sede do Reino. Ao forçar a volta de D. João VI, o Parlamento português esperava devolver o poder a Portugal e reduzir o Brasil à velha condição subalterna.
Houve províncias brasileiras que de pronto aderiram ao projeto de recolonização. Esse desejo foi particularmente forte no Grão-Pará, no Maranhão, no Piauí e na Bahia, que preferiam subordinar-se a Lisboa a sujeitar-se ao Rio de Janeiro.
Pintura de Antônio Parreiras retrata guerra na Bahia na época da Independência: província foi a última a expulsar portugueses e aderir à união brasileira, em 1823 (imagem: reprodução)
Um panfleto datado de junho de 1822 (às vésperas do grito do Ipiranga) defende explicitamente essa ideia. O autor do texto é o português Ignácio José Corrêa Drumond, que vivia no Brasil. Dirigindo-se a D. Pedro, então príncipe regente, o panfletista recomendou-lhe que abandonasse o barco dos separatistas:
“[Eu] já dava a conhecer a Vossa Alteza Real que no Brasil existia um partido de rebelião que conspiraria contra os europeus e contra os bons brasileiros, tendo por principal objeto a desligação dos dois reinos. Essa ruinosa intriga tem sido a causa dos desgraçados acontecimentos do Brasil. As seduções dos ambiciosos e loucos revolucionários estão comprometendo a Vossa Alteza Real.”
No panfleto, Drumond recorreu ao argumento do medo. Ele escreveu que, se o reino luso-brasileiro se partisse, o Brasil independente não disporia de forças militares suficientes para impedir insurreições escravas. Segundo ele, o país poderia se transformar num novo Haiti, onde poucos anos antes os negros tomaram o poder dos colonizadores franceses e aboliram a escravidão.
Reprovando a atitude de D. Pedro de ter expulsado do Rio de Janeiro tropas portuguesas favoráveis à recolonização do Brasil, o panfletista argumentou:
“Quem há de agora manter a boa ordem, fazer respeitar o direito de propriedade e decoro das famílias contra os sediciosos? Que segurança tem Vossa Alteza Real em ter tropa que o auxilie em uma terra onde o número dos mulatos e pretos é muito maior que o número de brancos? Poderão eles conseguir a sua liberdade sem dominarem os mesmos brancos?”
O desejo de união com Portugal nutrido pelas quatro províncias do Norte tem explicação. Os comerciantes do Grão-Pará, do Maranhão e do Piauí negociavam (e lucravam) muito mais com Lisboa do que com o Rio de Janeiro. Isso porque, em razão das correntes marítimas, as viagens de Belém ou São Luís para a foz do Rio Tejo eram mais rápidas do que para a Baía de Guanabara.
No caso da província da Bahia, a elite local nutria rancor pela elite carioca. Os baianos das classes abastadas desejavam recuperar pelo menos parte do prestígio e do poder que haviam perdido no século anterior, quando o Marquês de Pombal transferiu a capital colonial de Salvador para o Rio de Janeiro.
Pintura de Oscar Pereira da Silva retrata o Parlamento português, conhecido como Cortes de Lisboa, que tentou rebaixar o Brasil à condição de Colônia (imagem: reprodução/Museu Paulista da USP)
Outro projeto que se apresentou nos tempos da Independência, também revelado pelos panfletos contidos em Vozes do Brasil, foi o daqueles que não queriam a subordinação a Lisboa nem ao Rio de Janeiro. Os advogados mais radicais dessa ideia foram os pernambucanos. Para eles, a sua província deveria separar-se tanto de Portugal quanto do restante do Brasil e transformar-se numa república independente.
Para que seu projeto de Brasil vingasse, D. Pedro contou com o apoio decisivo do Rio de Janeiro, que não aceitava ser rebaixado de capital do Reino a capital da Colônia, e das vizinhas Minas Gerais e São Paulo. Em 1822, após o célebre Dia do Fico, o príncipe deixou o Rio e percorreu essas duas províncias costurando a aliança política necessária para a independência. É por essa razão que ele se encontrava em São Paulo no dia 7 de setembro, quando emitiu o brado retumbante às margens do Riacho do Ipiranga.
Por bem ou por mal, todas as demais províncias acabaram aderindo ao projeto vitorioso de D. Pedro. A maioria delas aceitou o predomínio do Rio de Janeiro por meio da negociação política. Algumas só passaram a fazer parte do Império do Brasil depois de terem sido derrotadas nas armas.
A historiadora Lúcia Bastos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), uma das pesquisadoras pioneiras no estudo dos panfletos da Independência, explica que esse tipo de material histórico passou quase dois séculos abandonado em arquivos públicos, coleções particulares e até sebos, para só se transformar em fonte de pesquisa acadêmica nos últimos 30 anos:
— Até algum tempo atrás, apenas os documentos oficiais eram considerados fontes históricas confiáveis, por terem sido produzidos pela elite. Felizmente hoje se reconhece a importância de outros tipos de material. Os panfletos revelam muito, e não apenas sobre o processo de independência, mas também sobre a sociedade da época.
De acordo com ela, os panfletos que o Senado publica agora interessam tanto aos historiadores quanto aos professores e alunos dos colégios do país. Todos os panfletos são acompanhados de textos introdutórios que os contextualizam, o que permite que sejam trabalhados em sala de aula. Os textos são de fácil leitura, já que a grafia do século 19 se assemelha bastante à atual.
Trecho de panfleto distribuído no Recife em fevereiro de 1822 descreve desejo de liberdade dos pernambucanos (imagem: reprodução/Vozes do Brasil)
Os originais dos 20 panfletos contidos no livro Vozes do Brasil estão desde 1916 nos Estados Unidos, o que dificultava o acesso dos pesquisadores. Os papéis pertencem à Biblioteca Oliveira Lima, localizada na Universidade Católica da América, em Washington.
O livro é resultado de uma parceria firmada entre a Biblioteca Oliveira Lima e o Senado — por meio da Comissão Curadora dos 200 Anos da Independência, presidida pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
Panfletos de cunho político já haviam circulado no Brasil muito antes da época de D. Pedro, em movimentos como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798) e a Revolução Pernambucana (1817). No processo da independência, contudo, eles surgiram simultaneamente em várias cidades da América portuguesa. Foi a primeira vez que o debate político deixou de ser localizado e se espraiou por todo o território brasileiro.
Não havia regra. Os textos podiam ser curtos ou extensos, eruditos ou mal escritos, em prosa ou verso, laudatórios ou caluniosos, assinados ou anônimos. Os panfletos eram distribuídos de mão em mão ou então pregados com cera de abelha em postes e portas de casas, igrejas e mercearias.
A informação circulava com velocidade. Um panfleto que defendia determinada posição podia ser rebatido poucos dias depois por outro panfleto com uma ideia diferente.
Como a sociedade era majoritariamente analfabeta, os papéis também eram lidos em voz alta em festas públicas, saraus domésticos, tabernas, teatros e até prostíbulos. As ideias chegavam inclusive aos grupos politicamente marginalizados, como os de escravos, indígenas e mulheres.
Movidos pelas ideias divulgadas em panfletos, grupos negros chegaram a pegar em armas acreditando que a Independência — por ser considerada sinônimo de liberdade — levaria à abolição da escravidão.
Pintura de Pedro Américo retrata o grito do Ipiranga. Panfletos mostram que processo de independência contou, sim, com a participação popular (imagem: reprodução/Museu do Ipiranga)
Uma das organizadoras do livro Vozes do Brasil, a historiadora Marcela Telles, da UFMG, diz que os panfletos mostram que, ao contrário do que por vezes se ensina na escola, a história não é feita apenas por alguns “heróis”, e a sociedade não é uma mera espectadora:
— O processo da independência não foi decidido somente por figuras como D. Pedro e José Bonifácio. Quando observamos esse processo mais de perto por meio dos panfletos, conseguimos ver que pessoas de todo tipo participaram e influíram nos rumos daquele Brasil que estava nascendo, desde políticos, funcionários públicos e comerciantes até mulheres e escravizados, passando por padres e militares.
Outra organizadora da obra, a historiadora Heloisa Starling, também da UFMG, avalia que os panfletos, mesmo tendo sido escritos dois séculos atrás, trazem uma lição importante para os brasileiros de hoje:
— Pela leitura dos panfletos, vemos que não estava escrito nas estrelas que a independência desembocaria naquele Brasil monárquico, unitário e escravocrata governado por D. Pedro I. Foi uma opção, já que muitos outros caminhos possíveis haviam sido apresentados. Isso significa que nós, como cidadãos, não podemos ficar calados. Temos que nos mexer, nos manifestar, protestar, mostrar o país que queremos ser e também o que não queremos ser. Quando não agimos, alguém acaba agindo por nós, com o risco de ser contra os nossos próprios interesses. Os panfletos da Independência, em resumo, mostram que o futuro é escolha e não cai do céu.
Fonte: Agência Senado