A controvérsia a respeito da autolavagem e da aplicação da teoria da continuidade delitiva aos crimes de corrupção passiva, não restando configurada a lavagem de dinheiro, foi objeto de julgamento no Superior Tribunal de Justiça, em sede de EDcl no AgRg no Recurso Especial Nº 1.856.938 ? PR, entendendo a 5ª Turma do Egrégio Tribunal que "a lavagem de valores oriundos de corrupção passiva, quando praticada pelo próprio agente, constitui mera consumação do delito de corrupção passiva na forma objetiva "receber".
Inicialmente, cumpre ressaltar que as condutas tipificadas no artigo 317 do Código Penal e na Lei 9613/98 são completamente discrepantes, sendo núcleo do tipo da corrupção passiva a solicitação, o recebimento ou a aceitação de vantagem indevida, ou de promessa de vantagem.
Por outro lado, no delito de lavagem de dinheiro, os núcleos são ocultar ou dissimular a origem daquilo que fora proveniente da infração penal anterior.
A conduta ocultar, para a doutrina, tem como significado esconder a origem, enquanto a conduta dissimular tem por base a ideia de dar uma aparência diversa da atual, ambas contribuindo para que o agente lavador consiga usufruir dos seus bens às margens da lei.
A partir das diversas tipologias, inúmeras são as possibilidades para se lavar dinheiro, entre as quais estão as obras de arte, os criptoativos, o direcionamento de recursos à compra de imóveis, ou seja, múltiplas possibilidades surgem para que um agente corrupto consiga distanciar a propina recebida da sua origem ilícita, dando a aparência de legalidade ao que é ilegal.
Já o verbo receber tem por definição entrar na posse de algo, obter como recompensa, favor, ou seja, significado completamente diverso do que seria ocultar ou dissimular.
Pelos núcleos dos respectivos tipos penais, percebe-se que, em uma análise puramente dogmática, seriam condutas diferenciadas, com significados diferentes e, consequentemente, estaria se tratando de condutas autônomas.
Porém, o Ministro Relator, ao realizar a análise detalhada dos fatos apresentados, pendeu pelo entendimento de que, na verdade, as condutas de corrupção passiva, amplamente comprovadas, demonstraram que os réus teriam apenas realizado o mero exaurimento do delito anterior, não restando configurada a lavagem de capitais.
A partir do entendimento doutrinário majoritário, a lavagem de dinheiro seria um crime parasitário, dependendo de uma conduta anterior para que se configure a sua consumação, mas não sendo necessária a condenação pela prática da conduta antecedente, bastando, pela própria Lei tipificadora da lavagem, em seu artigo 2º, parágrafo 1º, a existência de "indícios suficientes de autoria".
A partir disso, conforme exposado pelo eminente Ministro, no caso em tela, se trataria de um mero exaurimento do delito inicial de corrupção o recebimento da propina na modalidade "receber", sendo indiferente ter a prática se concretizado com a dissimulação ou não.
Ainda ressalta que a prestação de serviços com contratos fictícios e as viagens do réu seriam apenas métodos escolhidos para o recebimento das vantagens prometidas, integrando, assim, o próprio delito da corrupção.
Com o devido respeito ao pensamento apresentado, não parece se sustentar diante do modus operandi de agentes lavadores. Ora, sendo uma exposição clara da Legislação, não há espaço para uma interpretação extensiva do tema, pois a partir do momento em que há o recebimento do que tenha sido acordado entre os agentes criminosos, qualquer ato posterior para desvencilhar da origem ilícita torna-se, automaticamente, uma dissimulação ou uma ocultação, a depender do caso concreto.
Múltiplas possibilidades surgem para que um agente corrupto consiga distanciar a propina recebida da sua origem ilícita | Unsplash
Ao equiparar a conduta da dissimulação na lavagem ao recebimento, na figura da corrupção passiva, o crime de lavagem de capitais torna-se sem efeito, provocando a consequente redução da pena a ser imposta, tendo em vista que não restará mais configurada a lavagem de dinheiro, com pena de reclusão de 3 a 10 anos.
Cumpre ressaltar que, na presente análise, não se pretende apontar um equívoco na decisão, mas sim, gerar a reflexão a respeito de como devem se portar os atores do sistema processual penal brasileiro, delimitando, antecipadamente, para a acusação e para a defesa, quais os caminhos que podem ser seguidos na busca pela ideal aplicação da Justiça.
Dessa forma, o entendimento firmado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça traz à tona um novo capítulo de discussão quanto à configuração do crime de lavagem de dinheiro e a sua aplicação ou não dentro do ordenamento jurídico pátrio, tendo em vista que a extensão da interpretação quanto aos núcleos configuradores de condutas da lavagem de capitais poderá ser objeto de maiores debates, incluindo a figura da autolavagem, se essa seria mero exaurimento de um crime anterior ou se realmente poderia ser configurada no âmbito normativo brasileiro.
Na percepção atual, ressaltando-se, mais uma vez, o respeito pelas opiniões diversas, se o entendimento da 5ª Turma do STJ, trazido à tona no presente texto, vier a ser seguido nas demais esferas do Poder Judiciário, será aberto um novo capítulo no estudo da lavagem de capitais, tornando sem eficácia a tipificação do referido tipo penal na modalidade dissimulação.
A resposta efetiva aos crimes de colarinho branco, com o império da Lei como regra, passa por se adotar, no Brasil, a teoria da coculpabilidade às avessas, punindo com maior rigor quem detém maior poderio econômico ou melhores condições sociais, pois a prática do crime, nesses casos, merece maior reprovabilidade.
*Corrupção em Debate é uma coluna do Instituto Não Aceito Corrupção (INAC).