“Foi o momento mais difícil da minha vida”, diz a cientista brasileira Rosana Pinheiro Machado, de 43 anos, a respeito da cena cinematográfica (de suspense ou drama, você decide) que protagonizou nesta quinta-feira (17).
- Locação: um ponto de ônibus da Universidade de Bath, na Inglaterra, onde ela dá aulas.
- Situação meteorológica: chuva, muita chuva.
- Objetivo: consultar o resultado de um processo seletivo que havia lhe custado 18 meses de dedicação e que renderia um financiamento de 2 milhões de euros (R$ 11 milhões) para sua pesquisa na área de ciências sociais.
- Conflito: com os dedos molhados e a roupa encharcada, era impossível desbloquear a tela do celular para fazer a consulta. E aí?
Foram 10 minutos tentando.
Quando finalmente conseguiu ler a carta-resultado, Machado estava tão nervosa, que apelou para uma leitura dinâmica em busca de palavras como “aprovada” ou “aceita”.
E encontrou o que queria: "I'm pleased to" (traduzindo: "é com prazer que..."). Era a confirmação da verba milionária que bancará seu estudo sobre a relação entre precarização do trabalho e governos autoritários no Brasil, na Índia e nas Filipinas.
Os R$ 11 milhões serão concedidos por um órgão da União Europeia (Conselho Europeu de Investigação - ERC, na sigla em inglês), após rigorosa análise de currículos e sabatinas com nomes importantes da academia.
A seguinte informação comprova a relevância desse financiamento: de 2007 a 2021, 9 pesquisadores apoiados pelo ERC ganharam o prêmio Nobel.
Considerando todos os segmentos (ciências sociais, ciências da natureza e física/engenharia), submeteram-se a esta edição do processo seletivo: 2.652 projetos, principalmente da Alemanha, do Reino Unido e da França. Só 12% (313) foram aprovados e agora dividirão a verba total de 632 milhões de euros.
“Em alguns momentos, passei de 12 a 15 horas do meu dia me preparando para essas entrevistas. Eu precisava convencer [a banca] de que uma antropóloga é capaz de liderar uma pesquisa sobre ciência de dados”, conta a professora.
Nascida em Porto Alegre, Machado sempre estudou na rede pública. Aprendeu inglês, segundo ela, “tardiamente, só aos 26 anos”, o que a faz até hoje suar frio em apresentações no idioma (mesmo depois de já ter lecionado nas universidades de Harvard (nos EUA), como visitante, e de Oxford (na Inglaterra).
“A insegurança nunca acaba. Mas nem essa dificuldade me impediu de ser aprovada.”
Sobre o que é a pesquisa?
O estudo da brasileira busca analisar como governos populistas e autoritários conseguem recrutar apoiadores por meio de mensagens sobre empreendedorismo e individualismo.
Segundo Machado, o foco serão os trabalhadores "plataformizados" e informais da economia digital, como motoristas de aplicativo e vendedores de produtos por redes sociais.
“São grupos que passam 15 horas por dia empreendendo on-line e que estão mais expostos a uma esfera na qual a extrema direita tem mais hegemonia: a digital”, diz a pesquisadora. “Vamos analisar por que essas novas camadas médias da população são (ou não) alinhadas a esses políticos [conservadores].”
Não é a primeira experiência da brasileira neste assunto da precarização do mercado: desde a iniciação científica na graduação (ciências sociais) até o mestrado e o doutorado (antropologia), ela explora temas como camelôs de Porto Alegre, consumo popular em favelas do país e venda de “muambas” na China (onde, inclusive, chegou a morar durante a pesquisa).
Como usar os R$ 11 milhões do financiamento?
Machado conta que os R$ 11 milhões serão distribuídos da seguinte forma:
- 75% para a contratação de pesquisadores (doutorandos ou pós-doutorandos, que farão estudos etnográficos por 4 anos no Brasil, na Índia e nas Filipinas);
- 25% para cobrir custos do trabalho de campo e da divulgação científica (em sites, vídeos e publicações abertas para o público).
A ideia é que, ao longo dos próximos 5 anos, a pesquisa renda publicações de várias teses e artigos científicos.
"Estou até agora me recuperando da notícia [da aprovação do financiamento]", diz Machado. "Minha conquista mostra que pesquisadores de ciências humanas também podem liderar estudos internacionais. É possível e importante que isso aconteça."
Pesquisadora enfrentou longo processo seletivo — Foto: Arquivo pessoal widget de imagem