Questões pessoais são perpassadas por um elemento ?o último debate do segundo turno das eleições presidenciais de 2022, entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro.
"O Debate" é uma peça atualíssima, feita não só na urgência dos fatos que nos cercam, mas também da angústia que os roteiristas Jorge Furtado e Guel Arraes carregaram nos últimos meses. "Às vezes o nosso trabalho fica meio deslocado da realidade, enquanto a vida real está gritando na nossa cara", diz Furtado. "Essa peça foi uma espécie de televisão para nós", ressalta Arraes.
Ainda que a tônica do texto derive da disputa entre os dois candidatos, os argumentos que sustentam cada um dos polos são apresentados num jogo de esgrima finíssimo entre o sessentão Marcos e a quarentona Paula, dois jornalistas recém-separados e envolvidos no que os autores chamam de "debate do século". Há, portanto, um debate sobre o debate. "Nós podemos criar esse enredo na ficção e nele cabem todas as discussões possíveis", afirma Arraes.
Marcos é o diretor de um telejornal apresentado por Paula. Os dois são anti-Bolsonaro, mas manifestam sua repulsa de maneiras diferentes. "A discussão deles é um pouco sobre entender o Brasil, esses monstros que estão saindo do armário, entre rejeitar totalmente ou ter alguma empatia, ultrapassar a ojeriza atual", afirma Arraes. "O Brasil não debate mais. As pessoas se ofendem, gritam, cada um falando para sua bolha. A dramaturgia pode fazer esse serviço", acrescenta Furtado.
Enquanto Paula mantém posição inflamada, Marcos tenta contemporizar sobre os motivos que levam uma parcela da população a apoiar não só a figura de Bolsonaro, mas também as suas pautas. Os protagonistas discutem sobre o acesso facilitado às armas de fogo, a liberação do aborto, a retirada de radares de velocidade nas estradas, a corrupção contumaz, entre outros assuntos.
"Alguns amigos que leram a peça nos disseram que estávamos dando argumento para os bolsonaristas", brinca Arraes. "A democracia é torcer pelo Vasco estando na torcida do Flamengo, como dizia o Millôr Fernandes. E, mais do que isso, investigar qual é o ponto de vista de quem acha que mais armas na rua vão resolver o problema da segurança. Compreender isso faz parte da política", diz Furtado.
Um único assunto não entrou na contenda entre os jornalistas. "A Paula e o Marcos discordam em muitos aspectos, mas quando chegam ao tema da vacina não há discussão. A maneira como Bolsonaro sabotou a vacinação não deixa margem para argumentação", diz Furtado. "Aí não tem debate", diz Arraes.
A fabulação em torno de Lula e Bolsonaro foi inspirada em outro evento que teve o petista como protagonista, o debate com Fernando Collor, na primeira eleição presidencial após a redemocratização. A manipulação dos melhores momentos já assumida pela TV Globo influenciou diretamente na vitória do hoje senador por Alagoas. "Em vez de atirar para trás e recontar aquilo, decidimos jogar para o futuro e criar um cenário", afirma Arraes.
O evento ocorrido há mais de 30 anos também serviu de inspiração para uma discussão que os autores propõem sobre a importância do jornalismo em momentos extremos. No início da peça, Paula defende a veiculação de uma pesquisa eleitoral fajuta, mas que mostra a vantagem de Lula, algo que Marcos não aceita. No fim da peça, quando Marcos escreve um editorial defendendo o voto no petista, é Paula quem puxa o freio de mão.
"O jornalismo tem sido uma ilha de racionalidade. Basta ver que o número de mortes da pandemia quem diz é o consórcio dos órgãos de imprensa. É um escudo contra a tragédia que é Bolsonaro. Mas isso acontece após o jornalismo ter sido um pouco responsável por essa eleição ao atenuar essa figura", critica Furtado.
"Assim como na dramaturgia, na TV aberta, o jornalismo tem um poder. Precisamos ter cuidado e respeitar alguns limites, mas e quando estamos em uma situação limite, quando o outro lado não respeita nada? O que fazer? O jornalismo vive isso diariamente e precisa tomar decisões que impactam o futuro do país", argumenta Arraes.
"O Debate", atenção para o spoiler, não tem final. A cena derradeira termina quando 30% das urnas estão apuradas. "Já dá para saber quem ganhou?", questiona Marcos, antes do blackout indicado no texto. "A intenção é encenar ou filmar assim que possível e talvez o texto precise ser atualizado. Mas eu acho que se ele [Bolsonaro] chegar ao segundo turno, ele não vai debater com Lula. Como diz [o jornalista] Mino Carta, veremos o que veremos", diz Furtado.