O anúncio da possível criação de uma moeda comum entre Argentina e Brasil despertou uma série de questões em relação a como o projeto funcionaria e se ele substituiria o real e o peso. Questionados sobre o assunto, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e o líder argentino, Alberto Fernández, que se encontraram nesta semana para participar da 7ª cúpula da Comunidade de Estados Latinoamericanos e Caribenhos (Celac), realizada na Argentina, declararam que não têm muitas informações sobre o assunto. “Não sabemos como funcionaria a moeda comum entre a Argentina e o Brasil, mas sabemos o que acontece com as economias nacionais tendo a necessidade de funcionar com moedas estrangeiras, e sabemos como isso é nocivo”, disse Fernández.
Lula, por sua vez, chegou a dizer que se soubesse sobre o projeto, seria ministro da Fazenda e não presidente, porém, também ressaltou a necessidade de acabar com a dependência do dólar. “Por que não criar uma moeda comum do Mercosul, uma moeda comum dos Brics? Há países com dificuldades de obter dólares”, disse o petista. “Não estranho a curiosidade que uma discussão como essa apresenta, porque tudo o que é novo causa estranheza. Mas acho que tudo o que é novo precisa ser testado, porque não podemos fazer no século XXI aquilo que fazíamos no século XX”, acrescentou.
A moeda comum gerou controvérsias sobre a necessidade de sua criação, inclusive dentro da própria equipe econômica do governo brasileiro, que não chegou a um consenso sobre a viabilidade da medida. Em entrevista ao site Poder 360, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que a intensão da moeda é “driblar a dificuldade” dos argentinos com importações de produtos brasileiros, mas ressaltou que ela não irá substituir nem o peso nem o real. “A gente está quebrando a cabeça para encontrar uma solução. Alguma coisa em comum, alguma coisa que permita a gente incrementar o comércio, porque a Argentina é um dos países que compram manufaturados do Brasil e a nossa exportação para cá está caindo”, afirmou.
Em entrevista ao Portal Jovem Pan, a internacionalista pós-graduada em direito internacional Bárbara Paz enfatizou um ponto importante que tem sido confundido: a diferença entre moeda comum e moeda única. “Moeda única é a oficial no território dos países, caso isso acontecesse, acabariam as moedas de cada país, assim como acontece com o euro. A comum é uma unidade monetária para fazer negócios e negociações e não é utilizada nos territórios”, explica. “No caso de Brasil e Argentina seria moeda comum, mas ainda existiria o real e o peso”, acrescenta.
Alberto Pfeifer, coordenador geral do DIS, grupo de análise de estratégia internacional da USP, falou sobre a complexidade do assunto. “A ideia de uma moeda única é ter uma moeda comum para todo tipo de transação, é como o euro na Europa. O que se fala para fazer aqui no Mercosul é algo inconcebível no presente momento, porque para ter uma moeda única comum entre vários estados soberanos, a gente tem que abrir mão da soberania”, explica o especialista, ressaltando que uma moeda é um atributo da soberania. “Quando se fala em moeda comum, seria poder realizar transações comerciais escapando da intermediação de outras moedas, como o dólar”. Ele lembra que isso já foi tentado na América do Sul.
O assunto também foi mencionado pelo presidente Lula no encontro com Fernández, quando lembrou da tentativa de realizar transações nas moedas dos dois países em 2008, contudo, como aponta Pfeifer, “nunca houve sucesso por falta de garantia dos bancos centrais, que preferem trabalhar com o dólar como moeda de referência”. Bárbara fala que o que muda dos dias de hoje para 15 anos atrás é que hoje a ideia está sendo trabalhada com mais ‘pé no chão’. “Em 2008 já se falava em moeda única, mas era mais utópica, agora está com ideia de moeda comum, específica para transações comerciais”. Para o especialista em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP) Amâncio Jorge de Oliveira, não tem muita diferença. “Esse projeto vem sendo falado desde Fernando Henrique Cardoso, mas com mais dificuldade hoje, porque a disparidade macroeconômica é maior agora. Só pegar o processo europeu para entender a dificuldade de convergência”, diz. “Se não for feito com o devido preparo, diria que nessas condições não tem nada de vantajosos e é ilusionário”, conclui.
Luiz Fernando Paulillo, doutor em economia e diretor do Centro de Ciências Exatas e de Tecnologia da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), vai além e fala que uma das principais diferenças dos projetos é que hoje se tem o reconhecimento de que o Mercosul teve problemas e ficou paralisado, além de que houve avanços de acordos bilaterais de países da América do Sul com outros blocos. “De la para cá você teve um esforço dos países de buscar acordos bilaterais. Situações assim levam o Brasil a intensificar uma série de ajustes para criar condições mais tranquilas de comércio entre empresários de ambos os países nos produtos que eles queiram focar inicialmente”, explica.
Para ele, a criação de uma moeda comum parece uma “unidade de referência para intensificar comércio entre Brasil e Argentina e iniciar uma relação diferente com o dólar”, mas acrescenta que não é possível acabar com a dependência dessa moeda, como foi proposto por Lula e Fernández. “Você tem o dólar como referência internacional, mesmo que tenha uma unidade de valor que intermeie, quando a moeda for implantada, o câmbio do dólar continuará valendo”.
Os especialistas não veem com bons olhos a criação de uma moeda comum, pelo menos não agora. “Não traria benefícios para o Brasil, mas sim para Argentina. Para nós, seria mais um risco. Caso seja adotada essa moeda, o real seria o lacro da moeda e teríamos que absorver riscos atrelados a ela”, diz Bárbara, que considera esse projeto desnecessário porque já existe o dólar, além de não ser possível pensar em um projeto igual ao da União Europeia porque o cenário brasileiro é diferente, marcado por uma instabilidade política grande com muitos impeachments, golpes e histórico de ditadura.
“A instabilidade política da América do Sul dificultaria muito a criação de uma nova moeda, ela não traria tantos benefícios e muitos países teriam que se desfazer de políticas que eles têm hoje em dia para adotar políticas comum entre todos os países”. Pfeifer vê o projeto como um elemento de distração. “O que é importante para economia brasileira hoje é ter fundamento sólidos e uma agenda de reformas econômicas que facilitem o negócio, as transações, o intercâmbio, os investimentos produtivos brasileiros e estrangeiros no Brasil”, fala. “Criar uma moeda não tem nenhuma vantagem nesse momento, para mim parece mais um expediente retórico para criar um fato que chama atenção. Para os economistas e especialistas, é algo difícil de concretizar e os bancos centrais não gostam muito.”